Caminho dos condenados...

É solitário que sobrevivo as noites eternas e sigo meu caminho escolhendo os perigos menores; não há como escapar do perigo porque somos monstros e todo tipo de gente está atrás de nós, e como se isso não bastasse, os de minha espécie ainda se envolvem com os joguinhos da Jyhad ou com a Dança Macabra da não-vida...

O que me é reservado para esta noite?? Não sei... mas sigo em frente, sempre atento.

domingo, 17 de janeiro de 2010

O Abraço

Durante anos eu quis acreditar que ele realmente me amava, apesar do desdém com que ele me tratou do momento em que me tirou da casa de Mme Lefebvre até terminar minha instrução. E, sobretudo naquela noite especial, fui tratada com tamanha deferência que era-me impossível não acreditar em sua devoção por mim.

Tal impressão equivocada acerca da sua afeição derivava do Voto de Sangue ao qual eu estava
implacavelmente atada.

Mal extinguiu-se o fulgor rubro do crepúsculo minhas aias trataram de me colocar em pé, adornada como uma boneca, para enfrentar meu patrono em um derradeiro teste de meus conhecimentos. Quando ele finalmente considerou-me apta, aproximou-se de mim. A tensão que até então me dominava, esvaiu-se como se jamais tivesse existido quando me dei conta de que estava por acontecer o momento pelo qual eu havia dedicado os últimos cinco anos de minha existência. Uma fragrância máscula inundava meu ser a cada respiração, deixando-me tonta de desejo e felicidade. E quando suas presas romperam minha pele meu mundo explodiu. Emoções e sensações dos meus idos dias de menina me transpassaram. A alegria que havia naqueles dias ensolarados em que eu brincava com minha irmã nos campos, os lençóis sempre limpos, sempre perfumados de pequena e aconchegante cabana, deitar sob a coberta nos dias frios e melancólicos ou nua com as janelas abertas nos dias quentes, as histórias contadas pela velha bruxa na encosta da montanha. Também vieram os raros momentos de felicidade junto às meninas de Mmme Lefebvre, instantes em que toda velhacaria parecia ceder ao companheirismo, risos e vinho caro junto à lareira em noites especialmente produtivas. E, de assalto me tomaram também os desejos proibidos, aqueles que eu não me atrevia a confessar para ninguém, nem mesmo para mim mesma.

Lábios e línguas pareciam acariciar obscenamente meu corpo todo, coisas meladas preenchiam-me de uma maneira inacreditável, forçando seu caminho na carne antes imaculada. Boca e mãos ocupadas dando e recebendo prazer. Chicotes estalavam, laceravam a pele nua. Havia dor, havia humilhação, mas ao mesmo tempo dominação e sadismo. Eu era a escrava, eu era a senhora, eu era suja e perdida, mas era pura, sublime e linda. E, quando ele finalmente bebeu meu sangue, toda minha felicidade, luxúria e vergonha fluíram para ele deixando-me vazia, largada sobre a cama.

Então veio o desespero. Ele roubara toda minha vida e agora olhava para mim com incontido asco. Perguntei-me se ele iria realmente me trazer de volta e a simples idéia de que isso poderia não acontecer apavorava-me sobremaneira. Eu quedaria inerte até que a morte viesse me buscar, deixaria de existir e ninguém nunca mais saberia quem eu fui. “Camille saberá”, pensei.

Ao lembrar de minha irmã, a dor tornou-se ainda maior. As últimas palavras que dirigi a ela
foram rancorosas e agora eu, tardiamente, me arrependia.

Ainda chorava e me distraía com esses terríveis pensamentos quando o fogo líquido tocou meus lábios. Eram umas poucas gotas, mas o suficiente para me trazer de volta ao presente e à uma necessidade sem precedentes que era a fome de viver. Não posso dizer que foi um pensamento consciente que me levou a agarrar o pulso de meu senhor e começar a sugar seu vitae.

Na verdade, foi um impulso primitivo, completamente impensado e totalmente fora de controle.

Quanto mais eu bebia, mais sede eu sentia. Como se houvesse em mim um vazio interminável.

Acho que teria drenado meu senhor até a extinção se ele não tivesse me privado de seu vitae à força. Lembro-me de que ainda tentei lutar contra ele, mas tudo em vão. Bastava uma mão para me manter no lugar, porque mesmo em meu desespero, minha força não era nada em comparação à dele. Além disso, ele só precisou me segurar por alguns momentos até que meu corpo começasse a morrer.

A mais nítida memória que eu tenho daquela noite foi a falência do meu sistema respiratório. Eu não conseguia andar, sequer conseguia piscar, mas foi a falta de ar que me atormentou mais em um primeiro momento. Lembro-me de abrir minha boca e tentar desesperadamente puxar o ar para dentro de meus pulmões. E a cada inspirada, parecia vir menos ar, até que finalmente ele se foi por completo.

Meus olhos estavam bem abertos então e, lentamente parecia ficarem mais secos e mortos conforme o tempo passava. Os minutos escoavam lentamente, enquanto meu desespero ficava cada vez maior. Outras transformações ocorreram em meu corpo, eu as sentia, mesmo que não pudesse explica-las. Foram momentos de absoluto pavor até me dar conta de que estava com fome de novo.

Quando me movi pela primeira vez como uma vampira, meus ossos estalaram, a própria carne parecia se rasgar e eu senti o vitae dimanando pelo meu corpo como uma onda de calor, trazendo conforto por onde passava.

Meu senhor levou-me para um aposento contíguo onde várias garrafas estavam postas em uma grande mesa de carvalho. Sentei-me na cadeira que ele me ofereceu e, ainda maravilhada por minha nova “vida”, fiquei observando seus movimentos. Quando, porém, ele abriu a primeira garrafa e o cheio do vitae me atingiu, quase pulei para toma-la de suas mãos, mas com um único comando, meu patrono me conteve e então, obediente, tomei naquela frágil taça de cristal até a saciedade. Essa foi minha primeira lição prática sobre como dominar a Besta.

Escrito por Giselle